quinta-feira, 25 de outubro de 2012

MANUCURE NO TEATRO AVEIRENSE

João Grosso, ator


Sábado, Teatro Aveirense, às 16h00.

É com «olhos delicados, refinados, esguios e citadinos» que o sujeito poético de «Manucure» se nos apresenta. Sentado a uma mesa de café, numa atitude de desinteresse e entediamento, sonhando estar polindo as suas unhas (melhor, «sensacionando» estar polindo as suas unhas), vemo-lo em «bocejos amarelos», a meio de um dia «brutal, provinciano e democrático». Nesta auto-caracterização do sujeito lírico (já actor, porque máscara), representando ele próprio um papel, entrecruzam-se a ambição modernista, a pose esteticista e uma singular identificação com o feminino, que Sá-Carneiro enunciaria numa carta de 1914, dirigida a Fernando Pessoa, em que se imagina «uma rapariga estrangeira, de unhas polidas».
Significativamente, a questão do fingimento surge desde logo enunciada por via daquela que proponho como metáfora organizadora do poema: o verniz. Sobre o significado de «manicuro», o dicionário informa: «aquele que se dedica ao tratamento das mãos ou das unhas das mãos». ... Ora o poema de Mário Sá-Carneiro inicia-se justamente por essa sensação de polir as unhas, metáfora para depurar, mas também para mascarar e ainda – porque o verniz, mais tarde ou mais cedo, inevitavelmente estala – para rasgar e fragmentar. Não é, porém, exactamente a polir as unhas que este sujeito poético se nos apresenta; é a sentir-se poli-las. O que é importante, porque coloca desde logo esse inevitável distanciamento entre um «eu» e um «mim», tão fundamental para o funcionamento de um texto a que Fernando Pessoa chamaria poema «semi-futurista», fragmentado, partido ao meio, de facto, até na distribuição por duas grandes linhas estéticas, uma ligada ainda à grande tradição romântica e simbolista e a outra ligada ao futurismo.

Nuno Margarido Lopes, Maestro
A nossa leitura de «Manucure» parece nunca ter conseguido ficar totalmente imune à conhecida afirmação de Pessoa de que a intenção do poema era a de «blague» ou à sua observação de que a edição póstuma da obra de Sá-Carneiro incluiria o poema «não como arte, porém como simples curiosidade». A suposta ausência de seriedade do texto estaria, obviamente, na sua dimensão futurista e na manifesta presença de técnicas de composição que, despertando embora o interesse de Sá-Carneiro e Pessoa, não seriam nunca as predominantemente por eles exploradas. E, todavia, o poema liga-se à definição de beleza enunciada por Sá-Carneiro, em carta a Pessoa, em 1915: «Para mim basta-me a beleza – mesmo errada, fundamentalmente errada. Mas beleza: beleza retumbante de destaque e brilho, infinita de espelhos, convulsa de mil cores – muito verniz e muito ouro: teatro de magia e apoteose com rodas de fogo e corpos nus». Da afirmação de Sá-Carneiro retenho quatro expressões que encontram eco ao longo de «Manucure»: «beleza errada», «teatro», «apoteose», e, naturalmente, «muito verniz». Assim, o poema nunca poderia ser lido como esteticamente equilibrado, sendo antes encenação paródica da convivência chocante do extremo tédio e do frémito extremo, da transformação do pendor decadente e dos anseios pós-simbolistas em exaltação verbal, em «passo de corrida, [em] salto mortal, [n]a bofetada e [n]o murro», como o desejava Marinetti; e também encenação irónica dessa diferença entre o Eu e o Mim, vivendo do simulacro, traduzido no extremo da euforia apoteótica, que é anunciada até pela maisculada «APOTEOSE» ... – tudo convenientemente polido, envernizado, «manicurado».

Coro Juvenil de Lisboa
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Retorno à importância do verniz enquanto metáfora aglutinadora do texto. É que o verniz funciona a vários níveis. Em primeiro lugar, pode aplicar-se à primeira parte do poema, dele se relevando a sua característica parisiense, e, portanto, refinada, decadente: é o esteta que, «sempre na sensação de polir as [suas] unhas», de «as pintar com um verniz parisiense», está nos antípodas dos amigos «trigueiros, naturais, de bigodes fartos», «que escrevem mas têm partido político / E assistem a congressos republicanos, / Vão às mulheres, gostam de vinho tinto, / De peros ou de sardinhas fritas» (nesse sentido, o verniz emerge como paradigma da oposição entre o pragamatismo literário e a pureza da arte); ou é o esteta, fremindo com «obsess[ões] déb[eis]», «espelhos vagos», «leve[s] inflex[ões]», «finos arrepios», «inatingív[eis] deslocamento[s]», que, suspenso o tempo, depõe as limas, as tesouras, os «godets de verniz, / os polidores da [sua] sensação» e enceta a viagem para «vértices brutais», viagem acompanhada da «beleza futurista das mercadorias». Num e noutro caso, o verniz representa a dimensão cultural, civilizada, verbalmente expressa pelas imagens vagas, delicadas, refinadas, depois transformadas na brutalidade da indústria e do comércio modernos, manufacturados, mas também verbalmente servidos pelas mais básicas componentes frásicas, pelos gritos, pelas onomatopeias, pelo delírio selvático. Mas pode o caso inverter-se e, assim, num adicional círculo de reverberações, o verniz representar igualmente o trabalho existente na «estética futurista», a «nova sensibilidade tipográfica», o supérfluo dos «asteriscos – e as aspas...os acentos...», «os puzzle» frívolos da pontuação», os «ornamentos tipográficos», os «altos relevos, ornamentações», uma outra beleza metamorfoseada, «[p]ois toda esta Beleza ondeia lá também». É, então, neste envernizamento diverso, que é possível ao sujeito lírico esquecer não a pintura das unhas, mas a ideia (antes a sensação) de as haver pintado. E terminar, não com «a paz que ultrapassa o conhecimento», como acontece no poema de Elliot, mas no mais absoluto frenesi que está para lá da verbalização.

E, se as onomatopeias com que o poema fecha, «Zing-Tang, Zing-Tang, Tang, Tang, Tang», evocam o «Zang, Tumb Tuum», de Marinetti, a onomatopeia final «Prá Á Kk», seguida de exclamação e reticências, evoca, na sequência, o som de um elástico que se parte, ou de um chicote a estalar (desejado acompanhamento fúnebre expresso no poema «Fim») – ou, mais imaginativamente, o som do verniz que estala e se fragmenta. ...

Ana Luísa Amaral

Agradecemos à poeta Ana Luísa Amaral a amabilidade de nos ter autorizado usar excertos do seu ensaio sobre ”MANUCURE”, publicado em “SÉCULO DE OURO, ANTOLOGIA CRÍTICA DA POESIA PORTUGUESA DO SÉCULO XX”, Organização de Osvaldo Silvestre e Pedro Serra, Angelus Novus Editora e Edições Cotovia, Lda, Lisboa, 2002.

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